24/04/2010
Será???
Professor de Medicina Legal da Universidade de Alagoas, George Sanguinetti conquistou fama nacional ao contestar o laudo médico do duplo assassinato do empresário Paulo César Farias (tesoureiro da campanha vitoriosa de Fernando Collor de Mello à Presidência da República) e de sua namorada, Suzana Marcolino. Poucas horas depois de descobertos os corpos, em uma mansão de veraneio no norte de Maceió (AL), a polícia estadual já dava a versão oficial de que ocorreu um crime passional, após uma briga entre Suzana e o empresário.
Segundo esta interpretação, a namorada teria baleado PC e se matado em seguida.
O legista ficou perplexo diante de conclusão tão rápida e sem hesitação, porque sabia que a polícia militar estava completamente desaparelhada, a ponto de usar faca de cozinha para realizar autópsia. Para ele, tanta “eficiência” era questionável, principalmente a urgência em se arquivar logo o caso, com mínimas investigações.
Como Sanguinetti tem fama de insistente, o então tenente-coronel que investigava o caso ousou contestar a versão do professor. Mas Sanguinetti provou cientificamente que Suzana tinha sofrido violência e esganadura antes de levar o tiro que lhe tirou a vida, aumentando assim a suspeita de que os dois foram executados.
Nesta entrevista, ele revela outros fatos do assassinato dos dois alagoanos, como também a morte da garota Isabella Nardoni e do maníaco de Luziânia. Com relação a este último caso, Sanguinetti se dispõe, inclusive, a periciar o corpo do assassino, para saber se ele se matou ou foi assassinado. Ele ressalta, nesta entrevista, que está até disposto a vir analisar o cadáver do criminoso, sem cobrar por isso e custeando todas as despesas.
- O senhor foi consultado para analisar o caso do contraventor Rogério Andrade, que perdeu o filho em um atentado, que teria como alvo o próprio contraventor, com o carro explodindo, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro...
- Fui consultado por jornalistas, que pretendiam entender o caso, principalmente porque, oito dias depois, encontraram uma peça no corpo da vítima.
- O que o senhor achou disso?
- Algo que só poderia acontecer em uma republiqueta da África, sem criminalística. Ou seja, uma negligência de causar perplexidade, indignação!
- Como explicar que isso aconteça no Brasil, em uma cidade da importância do Rio de Janeiro?
- Vamos para a análise do fato em si: acontece uma explosão, uma viatura é apreendida, fica com a perícia técnica, e começa a ser executada uma pesquisa pericial. Mas acontece que esse trabalho pericial é muito importante, porque, com a dispersão dos componentes do artefato, é necessária a identificação. Pelos componentes do artefato pode-se chegar à autoria, à cidade de origem das peças que foram utilizadas ou mesmo ao fabricante. Mas, para a minha surpresa, uma peça que não é microscópica, que tem volume, foi encontrada. É como um desenvolvimento técnico, algo assim como obedecer ao sumário, à rotina dos procedimentos de levantamento de um local onde ocorreu uma explosão. Então, é claro, deve-se verificar, examinar tudo o que estiver exposto, como também o que não estiver, tudo o que for reentrância, enfim. O que não pode é acontecer uma coisa como essa, que expõe o nível científico da equipe que trabalha no caso da bomba, que explodiu dentro do carro.
- Ou seja, não houve o procedimento correto em um caso como este?
- Vou mais longe, de forma clara, para sintetizar o que de fato aconteceu, com uma palavra apenas: ne-gli-gên-cia!
- Para detonar a bomba bastou apenas acionar o celular...
- Essa é uma técnica muito sofisticada!
- Mas essa sofisticação pode representar uma vulnerabilidade na segurança de todos e de qualquer cidadão!
- Concordo! Isso demonstra que, digamos assim, os responsáveis são pessoas que têm sólidos conhecimentos, podendo tornar qualquer um de nós vítima de uma circunstância dessa, sem qualquer chance de defesa. O Rogério Andrade, por exemplo, só escapou porque o seu filho, de 17 anos, que não tinha carteira de habilitação, resolveu voltar dirigindo para casa, depois que eles deixaram a academia de ginástica, ficando o pai no banco do carona. O artifício foi colocado para atingir Rogério, mas não o filho.
- Atribui-se esse atentado ao crime organizado. O senhor concorda com isso?
- Não há a menor dúvida disso, porque o crime organizado consegue até um avanço em relação aos órgãos de segurança. Eu, sinceramente, vejo com clareza que prevalece neste caso um selo particular de segurança, de retaliação. O que motiva isso, na grande maioria dos casos, é a disputa pelo poder financeiro, que movimenta fortunas incalculáveis. Como o dinheiro compra tudo, é compreensível que eles estejam mais armados do que o próprio Estado, que - se não se reciclar, se não investir em equipamentos - vai acabar perdendo a guerra para o crime organizado, que está cada vez mais organizado. Quanto a isso, lamento muito, mas não tenho dúvida alguma.
- Este atentado no Rio de Janeiro, que o senhor foi ver de perto, até nos faz lembrar das cenas do filme “O Poderoso Chefão”, com bombas explodindo carros...
- Afinal, muitas vezes, a arte imita a vida. E vice-versa também, como este caso bem ilustra. O homem é imprevisível, como demonstraram os assassinos dos atletas israelenses nas olimpíadas de Munique, em 1972. Mas a criminalidade está se sofisticando cada vez mais.
- Na vizinhança de Brasília, em Luziânia, já no território de Goiás, um psicopata matou seis jovens, depois de cometer assédio sexual. Ele confessou os crimes e foi encontrado morto na prisão. Como o senhor interpreta este fato, a partir da sua experiência?
- Ele morreu enforcado!... Aqui em Alagoas, por conhecer bem casos como este, encaminhei ao Ministério Público um documento determinando que, em todo caso de enforcamento que tenha encarcerados como vítimas, eu devo ter acesso aos cadáveres, para examinar os “suicidados”...
- Por quê?
- Só com um exame minucioso é possível saber se ele morreu com as próprias mãos ou simplesmente foi assassinado. É necessária uma perícia completa antes de se chegar a uma conclusão.
- No caso do assassino dos menores, qual é a previsão?
- Quer saber de uma coisa? Eu estou até disposto a ir examinar este caso, não cobraria nada, tudo por minha conta, só para constatar o que aconteceu realmente. Sem dúvida alguma, é estranhíssima a explicação, aquela tira retirada do colchão em sua cela!... É porque o psicopata tem aquele perfil já bem conhecido por psicólogos e psiquiatras, segundo o qual eles simplesmente não se matam, inclusive isso está consignado em autos. Eu, por exemplo, já tive acesso a parecer psicológico e psiquiátrico nesse sentido...
- Pelo que o senhor acompanhou deste caso, acha que ele tinha perfil suicida?
- Este caso precisa ser amplamente investigado, porque no Brasil não existe pena de morte e, se existisse, só depois do trâmite judicial é que ocorreria a execução. Dá para constatar o descaso das autoridades diante de um fato muito grave como esse, quando um preso, que deveria estar sendo bem vigiado, se mata. Mas nada disso aconteceu. É preciso ficar bem explicado, porque não está convencendo ninguém.
- O senhor acha que um erro pode comprometer todo um auto?
- Sem dúvida alguma! Mas isso é básico na Medicina Legal.
- O caso do empresário Paulo César Farias, o PC Farias, encontrado morto com a namorada, pode ser considerado exemplar?
- Quando foram divulgadas as posições dos corpos, na cena do crime, imediatamente discordei, a partir de um detalhe: a arma estava a mais de dois metros das mãos de Suzana [Marcolino], a namorada dele, como também não existiam impressões digitais. Também observei um detalhe muito importante: a parte mais delgada do coágulo, estranhamente, ficava para cima. E isso, em Medicina Legal, significa o arrastamento do corpo.
- Em que posição o PC Farias foi encontrado?
- Percebi, logo, que no seu corpo havia uma coisa que se chama “orla de contusão”, mas o meu colega, Badan Palhares, em nenhum momento deu atenção a isso. A orla da contusão é a indicação segura de que o tiro entrou pela esquerda. Como o primeiro ponto de contato do projétil na pele causa um ponto de concavidade, isso demonstrou que o impacto da bala chegou pelo lado esquerdo. Ou seja, foi disparado de cima, a cerca de 1m20cm. Também não havia pólvora nem qualquer elemento indicando o tiro à curta distância.
- Mas o laudo registra uma conclusão bem diferente. Por quê?
- Registraram no laudo que o tiro foi feito do lado oposto ao da cama, ou seja, o atirador estava do lado direito. Desse jeito, o PC estaria vivo até hoje... Isso porque, nessa posição, o projétil teria saído pelo pulmão ou ficado alojado na parte esquerda ou, ainda, até na linha média, mas jamais na omoplata do lado direito. Durante décadas, fui professor de Medicina Legal. Assim que vi na fotografia as posições em que os corpos se encontravam, logo desconfiei da versão de que Suzana não tinha sofrido violência. Não dava mesmo para acreditar.
- Por que o senhor chegou a essa conclusão com tanta rapidez?
- Se eu fosse pretensioso, diria que foi por ter um olho clínico aguçado e profissional. O hióide, que vem a ser um pequeno osso situado na parte anterior do pescoço, acima da laringe, não havia sido manuseado pelo profissional na autópsia. Só durante a exumação, quando o doutor Badan mexeu no hióideo, eu pensei comigo mesmo: “Está quebrado!”. Estava bem visível uma linha de fratura na haste direita com o corpo, com pigmento hematóide, uma parte violácea. Foi o bastante para eu não ter a menor dúvida.
- O senhor tem uma explicação para uma pressa em incinerar o colchão e os lençóis que estavam na cama onde os dois foram encontrados mortos?
- Sem dúvida alguma, trata-se de mais um absurdo neste caso. Qualquer delegado teria que preservar tudo para a possibilidade de se apresentar a contra-prova, e os lençóis também não deveriam jamais ter sido queimados.
- Surgiu uma versão de que Suzana Marcolino teria sido esganada...
- Ela não chegou a morrer por esganadura, mas eu tenho elementos suficientes para acreditar que, antes de ser alvejada, ela foi vítima de violência. O que pode ter ocorrido foi que chegou a ser contida pela região cervical, o que demonstra brutalidade, como também as equimoses.
- Na época desses crimes, o senhor não era médico-legista da polícia. O que o levou a entrar neste caso?
- Dois dias depois que os corpos foram encontrados, conversei com os legistas que estavam no caso, alguns inclusive eram meus ex-alunos. Fiquei à vontade para pedir-lhes os dados da necropsia. Em pouco tempo, cheguei à conclusão de que tudo estava errado e que fora um duplo homicídio, e não apenas um crime passional, como fizeram prevalecer.
- Isso significa que Suzana foi tão vítima quanto PC?
- Eu provo! Isso, de acordo com a Medicina Legal. Ela estava subjugada, não atirou no PC nem nela própria. Ninguém jamais iria me convencer de que Suzana atirou em PC, nem um único tiro. Primeiro, porque era uma amadora [para desferir os tiros com a destreza apresentada]. Além do mais, ela estava embriagada, sem coordenação motora, jamais conseguiria...
- Prevalece, então, a convicção de que o crime foi uma queima de arquivo, coisa de mafiosos?
- Tenho certeza de que o crime não foi iniciativa dos mafiosos da Calábria, mas alagoanos... Sabia-se que o PC tinha vínculos com a Máfia, mas exclusivamente para a lavagem de dinheiro, e com a Cosa Nostra ele jamais criaria um ambiente de confronto, porque sabia o que lhe aconteceria. Até porque ninguém subestimava a inteligência dele. A Máfia não tinha o menor interesse em matá-lo. Nada me convence de que foi o braço mafioso que matou os dois.
- O que aconteceu, afinal?
- Sem dúvida alguma, esse crime foi bem planejado, com toda a logística montada longe de Alagoas, a partir de um conflito entre as autoridades. Alagoas entrou com o cenário e os personagens.
- O senhor, mesmo depois de todas as evidências contrárias, alimentou uma polêmica com relação à morte de Isabella Nardoni, com os pais condenados pela Justiça...
- O que aconteceu foi o seguinte: os peritos declararam no laudo necroscópico que Isabella morreu de asfixia mecânica, ou seja, esganadura, e também politraumatismo. Caso seja verdadeira essa conclusão, a primeira morte da garota ocorreu no apartamento de Alexandre Nardoni, no sexto andar do Edifício London. A segunda aconteceria em consequência do choque do corpo com o solo, depois da precipitação. Acontece que existem duas causas de morte diferentes, que aconteceram em locais e momentos diferentes. Tenho a absoluta certeza de que só se morre uma vez, só há uma morte.
- Qual é a origem da sua discordância?
- Minha posição é fundamentada em caráter exclusivamente técnico, e meu único objetivo é contribuir com o esclarecimento do caso, que sensibilizou e continua sensibilizando o país. Basta, apenas, analisar os laudos periciais de forma imparcial, para que se chegue à conclusão de que prevalecem conflitos e divergências entre os documentos médico-legais e periciais, além de conclusões sem a necessária fundamentação científica...
- Por exemplo?
- Primeiro, a dubiedade da causa da morte, em horários e locais diferentes, asfixia por embolia gordurosa confundida com asfixia por esganadura, interpretação de pequenas lesões nos lábios e na boca, consequência de utilização de ambu [uma bolsa de borracha ou silicone, contendo válvulas e conectores, utilizada para inflar o ar oxigenado no pulmão do agonizante], seguida de entubação orotraqueal causada por tentativa de sufocação.
- Qual foi o maior erro neste caso?
- Sem dúvida alguma, foi não realizar de imediato o exame das unhas do casal, porque a existência ou não de material orgânico de Isabella definiria a culpa ou a inocência dos acusados. Ocorre que não se faz exame de unhas com observação de olho ou com fotografias. Como é que olhando as mãos de uma pessoa e fotografando é possível afirmar se ela teve a oportunidade de arranhar alguém?
- O que o senhor viu de grave?
- Começa pela fotografia de Isabela Nardoni que foi anexada ao laudo necroscópico pelos peritos. Na imagem, o pescoço deveria ficar visível, mas ele aparece coberto por uma placa de identificação do cadáver, por meio de números, não permitindo a visualização do pescoço, nem de frente nem na lateral, o que eu, pessoalmente, considero conduta atípica, estranha também.
- Voltando à esganadura, o senhor insiste que...
- Existem marcas produzidas pela unha do agressor, de forma semilunar, apergaminhadas e de cor pardo-amarelada, que constituem o sinal mais importante da esganadura. Se o agressor é destro, ou seja, se a mão dominante é a direita, aparecem essas marcas em maior quantidade no lado esquerdo da vítima.
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