Sessões de exorcismo, raves
temáticas, megaencontros de oração.
A Igreja Católica se flexibiliza para
atrair os seguidores desgarrados.
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Noite de terça-feira passada. Chuva incessante, trânsito infernal na Zona Sul e temperatura baixa. Um quadro sob medida para o carioca aboletar-se em casa. Mas quem passasse pela Paróquia Nossa Senhora da Conceição, na Gávea, se surpreenderia. Movidas pela fé, mais de 600 pessoas se aglomeram uma vez por mês para ouvir a pregação de Pedro Siqueira. Do lado de fora, outra legião espreita o altar. Siqueira, diga-se, não é membro do clero. Trata-se de um advogado de 38 anos, casado e torcedor do Fluminense, que, religiosamente, reúne uma multidão para rezar o terço. Durante as orações, ele transmite mensagens sobre Nossa Senhora para a plateia. Muitos se emocionam e desabam no choro. "A mulher de meia-idade que está aqui presente para pedir por uma criança com problema de audição, saiba que ela ficará curada", diz. Durante o encontro de quase duas horas, animado por música ao vivo, os devotos recebem mais de quinze avisos: para pessoas deprimidas ou com problemas familiares, endividadas e até enfermas de câncer.
Pedro Siqueira, que toca violão e canta no culto, é um dos novos fenômenos de audiência da Igreja Católica no Rio de Janeiro. E ela dá graças a Deus por isso. Com a expansão das seitas evangélicas e o crescimento dos que se consideram ateus, agnósticos ou simplesmente indiferentes, a milenar instituição se flexibiliza para tentar atrair novos e velhos simpatizantes – que em geral tiveram formação religiosa na infância, mas ao longo da vida acabaram se desgarrando do rebanho. Os princípios e valores da religião, claro, permanecem os mesmos. Mas o leque de atrações se abriu: há encontros para casais em segunda união, orações de cura, sessões de exorcismo, bênçãos de animais e festas rave embaladas por trilha sonora eclesiástica. "Não é uma questão de correr atrás de clientela, mas sim de se adaptar aos novos tempos", afirma o padre Joel Portella Amado, coordenador arquidiocesano da Pastoral do Rio.
Selmy Yassuda |
Bênção de animais: na Paróquia da Ressurreição, os bichos são purificados com água benta |
A guerra santa pela alma e devoção dos cariocas se acirrou nas últimas décadas. São poucas as pesquisas recentes sobre o tema, mas é consenso que a Igreja Católica perde terreno. Na Zona Norte do Rio de Janeiro, para a crescente influência evangélica. Na Zona Sul, para a praia, o chope no barzinho, o cinema, o computador e outras distrações do mundo moderno. (Re)Converter o cristão é tarefa árdua numa cidade com tentações em cada esquina. De acordo com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizado em 2000, cerca de 3,5 milhões de habitantes do município se declararam católicos, apostólicos, romanos. Ou seja, 10% a menos que em 1991. Por sua vez, o número de evangélicos praticamente dobrou no mesmo período (veja o quadro ao lado).Mesmo entre os que se dizem católicos, muitos só vão à missa em casamentos ou batizados. "É uma realidade", admite a professora Lina Boff, do Departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC). "Por causa disso, a Igreja busca formas mais criativas de expressar sua fé sem mudar a doutrina."
Ismar Ingber |
Domingo à noite: em Ipanema, fiéis se aglomeram |
Um exemplo emblemático são os encontros de casais em segunda união promovidos por diversas paróquias. Trata-se de uma mudança significativa de mentalidade. A Igreja Católica é contrária ao divórcio e considera o casamento um sacramento indissolúvel, exceto pela morte de um dos cônjuges. Não que a doutrina tenha mudado, mas hoje existe uma orientação específica para inserir as pessoas separadas na rotina religiosa. Com um relacionamento de 23 anos, o médico Ronaldo Pereira, 56 anos, e a restauradora Dinalva de Azevedo, 53, participam assiduamente das reuniões da Paróquia São João Batista da Lagoa, em Botafogo. Ele já foi casado, ela não. "É ótimo saber que não estamos excluídos", comenta Pereira. "Uma coisa é dizer que eles estão errados, outra é mandá-los para o inferno", enfatiza o reitor da PUC, o padre Jesus Hortal Sánchez, especialista em direito canônico.
Selmy Yassuda |
Sucesso de público: mais de 600 pessoas cantam e rezam com o advogado Pedro Siqueira |
As táticas para cooptar devotos desgarrados podem impressionar os mais desavisados. Ritual praticado desde a Idade Média para afastar os maus espíritos, as sessões de exorcismo andavam esquecidas, mas vêm ganhando espaço em locais antes improváveis da Zona Sul. Uma missa na Igreja São José, na Lagoa, realizada sempre na penúltima quarta-feira do mês, chama atenção por estar sempre apinhada de gente. Celebrada pelo pároco Geovane Ferreira Silva, conhecido como "o padre exorcista", a cerimônia tem início de forma arrebatadora. O líder espiritual empunha uma cruz na direção dos presentes, que, por sua vez, levantam fotos de parentes, amigos e pessoas necessitadas de algum tipo de ajuda. Ao contrário das cenas de filmes de possessão demoníaca, não se ouvem urros nem gritos histéricos (mas o espetáculo todo é bem diferente das celebrações tradicionais). Ao final, Silva borrifa o público com água benta.
Selmy Yassuda |
Fé on-line: o advogado Berthaldo Soares criou |
O monge beneditino dom Cipriano Chagas, de 86 anos, é outro que consegue reunir multidões em busca de apoio espiritual. Às segundas-feiras, exatamente ao meio-dia, ele celebra uma missa na Comunidade Emanuel – sobrado na Rua Dom Gerardo, próximo ao Mosteiro de São Bento, no Centro – com orações voltadas para a cura e a libertação. Mais de 500 pessoas se espremem durante duas horas para ouvir a pregação. "Há quatro anos não perco uma celebração dessas", conta Carlos Alberto Serpa, presidente da Cesgranrio e diretor da Casa de Arte e Cultura Julieta de Serpa. "Já vi pessoas dando testemunhos de cura de câncer, de recuperação surpreendente após um acidente e de libertação das drogas", relata. Um igualmente espantoso sucesso da ala secular é a dona de casa Thereza Arruda, 78 anos, a quem se atribui uma série de graças alcançadas. Durante três quintas-feiras por mês, ela promove encontros de reza voltada para a cura interior que atraem crianças e adultos à Paróquia Nossa Senhora da Conceição, na Gávea. Em cada uma dessas reuniões chegam a comparecer mais de 200 pessoas.
Selmy Yassuda |
Dinalva e Ronaldo: de volta aos cultos |
No Rio, a Igreja Católica possui mais de 600 padres, espalhados em 254 paróquias. Trata-se de um número expressivo, acrescido de um enorme contingente de advogados, donas de casa e diversos colaboradores com presença ativa nas atividades religosas – alguns deles com atuação crucial. Gente como o advogado Berthaldo Soares, criador do sitewww.tardecommaria.com.br, que registra em média 3 000 acessos diários. Essa comunidade virtual vai ajudar a construir no Recreio dos Bandeirantes a primeira réplica do mundo da capela de Fátima, situada em Portugal. Orçada em 3 milhões de reais, a obra deve ser concluída em maio. "Queremos nos aproximar da população usando internet, teatros, casas de show e praias", enumera o padre Joel Portella Amado, o coordenador da Pastoral do Rio. A estratégia tem funcionado muito bem. Dom Cipriano, monge da concorrida missa de segunda-feira no Centro, em agosto arrastou 1 200 pessoas a três encontros no Teatro dos Quatro, no Shopping da Gávea. Paróquias que antes cerravam as portas ao entardecer ampliaram seu funcionamento. É o caso da Nossa Senhora de Copacabana, na Rua Hilário de Gouveia, aberta diariamente até as 22 horas. "Não há regra canônica que proíba animais, desde que sejam mansos, comportem-se bem e não incomodem os devotos", diz Devellard. Definitivamente, existe algo de novo nas igrejas da cidade.
Ismar Ingber |
Missa ao meio-dia: dom Cipriano reúne uma multidão Fonte: Veja Rio |
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