27/09/2010

Verbo for...


 Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já  cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e  dos outros coroas.
 
 Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não  ser reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não  agíssemos com o vigor necessário - evidentemente o condizente com a  nossa condição provecta -, tudo sairia fora de controle, mais do que  já está.
 
 O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez  até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas  gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez).
 O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de  Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês  ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do  curso secundário e a gente tinha que se virar por fora.
 
 Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não  interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão  ruybarbosianamente quanto possível, com citações   ecoradas,   preferivelmente.
 
Os textos em latim eram As Catilinárias ou a  Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho. Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral  muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora.
 
 Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o  martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de  hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se  juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre  de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de  colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não  perdoava.
 
 - Traduza aí: quousque tandem, Catilina, patientia nostra - dizia  ele ao entanguido vestibulando.
 
 - 'Catilina, quanta paciência tens?' - retrucava o infeliz.
 
 Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o  estômago, olhar para a platéia como quem pede solidariedade e dar uma  carreirinha em direção à porta da sala.
 
 - Ai, minha barriga! - exclamava ele. - Deus, oh Deus, que fiz eu  para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos  dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!
 
 Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal  passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos,  quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova  oral.
 
 Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele  me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.
 
 O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar  alguma coisa do candidato e vinha vê-lo 'dar um show'.
 
 Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi  moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um  cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:
 - Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira  oração do
 
 Hino Nacional!
 - As margens plácidas - respondi instantaneamente e o mestre quase  deixa cair a xícara.
 - Por que não é indeterminado, 'ouviram, etc.'?
 - Porque o 'as' de 'as margens plácidas' não é craseado.
 
Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no  hino.
 'Nem teme quem te adora a própria morte': sujeito: 'quem te adora.',  se pusermos na ordem direta...
 
- Chega! - berrou ele. - Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre  a Bahia!
 
Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor  da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me  designassem para a banca de português, com prova oral e tudo.
 
Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero  injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim.
 
Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito  elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era  bestíssima.
 
Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma  palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por  diante.
 
 Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder  nada.
 Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a  palavra 'for' tanto podia ser do verbo 'ser' quanto do verbo 'ir'.
 
 Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um  gênio, dou quatro, ele! passa e seja o que Deus quiser.
 
- Esse 'for' aí, que verbo é esse?
 
Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que  resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e  me encarou sorridente.
 - Verbo for.
 - Verbo o quê?
 - Verbo for.
 - Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.
 - Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. - Nós fomos,  vós fondes, eles fõem.
 
Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado  passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da  Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como  marajá, ou as três coisas.
 
Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e,  nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para  quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.

(João Ubaldo Ribeiro, "O Verbo 'For'". O Estado de São Paulo, 13/setembro/98).

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