23/02/2014

Quem nunca errou?

A tendência agora é pedir perdão muito tempo passado o caso, como o mea culpa da Igreja Católica
Desculpas sinceras. Expressão caída em desuso. Totalmente fora de moda. Foi mal, errei. Perdão, pronto. Não ouço isso. Não se tem vergonha de errar, mas admitir o erro não rola. Venho reparando, no elevador por exemplo, onde as pessoas que vão entrar não esperam mais as que estão lá saírem antes, o que é uma questão de civilidade, mas também de lógica, de física, de matemática, saem primeiro os que já estão dentro para que os que estão fora entrem no elevador vazio. Não é muito mais simples? A experiência já não se comprovou por si própria menos complicada assim? A questão não é de física, de matemática ou de história. O problema é falta de educação. Estamos vivendo o resultado de anos de desprezo pela educação, e agora, como produto desse descaso, o caos ético, aí sim uma simples lei da física.
O governo não comete erros. A oposição também não. A militância também não. Se há alguém que erra é o povo. Os médicos jamais erraram e erram cada dia menos porque há cada vez mais gente inferior em quem se pode despejar a culpa, foi o anestesista, foi a enfermeira, foi o paciente. No Brasil não existem erros médicos. Conheço só no Rio uns quatro doutores por quem passei, eu e muitas outras pessoas, que deveriam estar proibidos de exercer a medicina, senão presos, mas reclamar a quem? Ao chefe dos médicos? Quanto mais chefe, menos admitirá que outros médicos possam vir a errar, errar é para humanos. É normal que um cirurgião, rico e bem-sucedido, que atende em consultório da Zona Sul com tapetes espessos e esculturas caras, opere uma moça, esqueça dentro dela uma tesoura com gaze e, uma vez o exame de imagem comprovando o deslize, nunca mais atenda aos aflitos telefonemas de sua vítima? “Erro da instrumentadora”, mandou dizer lá de baixo da saia da mamãe. Errar não é humano, errar é o humano. Acontecem erros, mas quem é o responsável pela instrumentadora? Quando trabalha-se em equipe o líder se responsabiliza por seu grupo, assume erros que não necessariamente ele, ou ela, chefe, hajam cometido. O líder diz “erramos” ou mesmo “errei” e segue em frente, para aprender com o erro e passar seu aprendizado adiante. Se ninguém assume os erros como poderá aprender com eles, que é para isso que eles servem? As erratas dos jornais são sempre em um cantinho admitindo uns errinhos de ortografia, no máximo. A tendência agora é pedir perdão muito tempo passado o caso, como o mea culpa da Igreja Católica, pedindo desculpas por séculos de abusos de variadas formas, psicológicas, mentais e físicas, conhecidos mas negados e calados por trás de seu teatro cristalizado. A igreja não comete erros. No imbróglio relativo ao deputado Marcelo Freixo, O GLOBO conseguiu apenas dizer que nada tem contra o deputado, assim como este, em trecho de sua carta, muxixou não se sentir acima do bem e do mal. Enfim, o que interessa: Freixo chama a atenção para uma prática jornalística que ele denuncia: o fatal “o deputado nega”. O que concluímos naturalmente quando notícias e matérias fecham com “o deputado nega”? Ele está mentindo, pensamos. “O réu nega”, ou seja, o réu mente. “A compositora nega”. Ela mente. Negamos até a morte seja lá o que for. A militância comprada não erra. Mercenários não erram. Acidentes é que acontecem. “Nem sabia que aquilo era um rojão”.
Vi, em uma matéria de telejornal, brasileiros nas ruas respondendo ao repórter se tinham consciência da pequena corrupção cometida, flagrada naquele instante pelo jornalista, como jogar lixo no chão, avançar o sinal, dirigir embriagado, fazer gato de luz, comprar produtos piratas, o que tinham a dizer, por que haviam escolhido agir assim? Todos tinham uma desculpa, pensando somente em si, nem sequer cogitando que fechar o cruzamento reflete no trânsito da cidade, invade espaço e tempo dos outros. Outros? “É, tá errado, mas fazer o quê, né? Rererê”. “Todo mundo erra, rarará”. A autocomplacência é a bola da vez. Esse é o comando geral. Somos uma democracia, todo mundo pode errar, com ou sem intenção. Todo mundo tem direito de mentir, claro. Tive uma empregada, Tereza, que eu chamava de “Da praia” porque era lá que ela passava o dia, mas que vinha do sertão da Bahia e que a cada erro cometido, em vez de dizer “Adriana, desculpe, fui eu”, dizia: “não comi proteína na infância, não posso fazer nada”. Fui deixando que ela ficasse no emprego porque achava graça nessa resposta ready-made, pronta para ser disparada a qualquer momento ante a menor provocação dentro ou fora de qualquer contexto. Depois comecei a achar que, por essa resposta e por ganhar aquele salário todo para passar o dia no Posto 8, ela devia ter comido não só proteína como glicose e nutrientes em excesso de modo geral, fiquei com medo de tanta esperteza, e nossa história acabou nesse momento.
O Brasil é patriarcal, e intuo que o código fundamental masculino do “negue até a morte” no quesito trair a mulher contaminou os demais aspectos da sociedade brasileira como uma bactéria. Já achava isso antes, mas agora meu ouvido anda saturado de não fui eu, não vi, nem sabia, ninguém me passou nada, o advogado nega, o miliciano nega, o policial nega, o doutor nega. Será então que quando o “político nega” está representando só o partido e seus próprios interesses ou também, infelizmente, seus eleitores e suas pequenas corrupções, “quem nunca errou, moça?”. Senão vejamos, quem são os possíveis candidatos ao governo do Estado do Rio de Janeiro?












Adriana Calcanhotto

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