30/08/2014

Carta para Josefa, minha avó.: Texto magistral de José Saramago.

Este texto tem sido amplamente divulgado nas escolas de Portugal, até porque durante o mês de outubro comemora-se o mês do idoso. É habitual nas disciplinas de Português e de Formação Cívica os alunos e docentes  tratarem dos direitos das pessoas idosas.
As turmas do 7º ano, quando trabalham o texto normativo "A Carta", gostam de ler o que o autor diz sobre a sua avó. Discute-se se o texto cumpre esses critérios ou se é outro tipo de texto. Em termos de conteúdo, transparece nas suas palavras o amor incondicional por alguém que de tão puro e natural está acima de todas as imperfeições do ser humano. Um exemplo a seguir por uma sociedade que não valoriza as pessoas mais velhas.
A reação dos alunos é sempre muito boa: emocionam-se. Poucos são aqueles que mantêm uma relação tão forte com esta figura, a avó. Vivemos, sem dúvida,  tempos de crise, sobretudo ao nível dos valores.
Trata-se efetivamente de uma crônica que Saramago escreveu e que surge no livro Deste Mundo e do Outro.


Josefa Caixinha

Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste  se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias d aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.
Não sabes nada o mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas,  um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És  sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao  roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos que já perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-mo tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.
Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.
Não teremos, realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, por que te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!"
É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua.

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